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12 de Mai de 2025
'COP na Amazônia não faz sentido sem amazônidas', diz reitor da UFPA
Gilmar Pereira da Silva quer levar vozes e conhecimento científico gerado na instituição para debates dentro da área de autoridades na conferência da ONU
Rafael Vazquez
12/05/2025
A realização da COP30, conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, em uma cidade da Amazônia somente terá sentido e legado real se tiver a presença dos amazônidas. Essa é a visão do atual reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Gilmar Pereira da Silva, empossado no cargo em outubro do ano ado.
Para que seja alcançado esse objetivo além das obras de infraestrutura que estão em andamento em Belém, Silva tem liderado a iniciativa de reunir dentro da UFPA, a segundo maior universidade federal do país, grupos de representantes dos povos da Amazônia para ouvir as demandas e apresentá-las de forma organizada durante a COP30
De acordo com o reitor, a UFPA solicitou a inscrição para participar da conferência dentro da "blue zone", espaço onde ocorrem as negociações oficiais, reuniões de grupos de trabalho e sessões plenárias da COP. A área é ível apenas para representantes das nações participantes e observadores credenciados.
"Creio que vamos conseguir, pois a nossa leitura é a de que uma COP na Amazônia não tem sentido se não tiver os amazônidas dentro. Por isso criamos um movimento na universidade que estamos chamando de Ciência e Vozes da Amazônia para levar a esse espaço de decisão as vozes da sociedade civil, dos quilombolas, indígenas, extrativistas e sindicatos", disse Silva em entrevista ao Valor.
Embora esteja no cargo há apenas seis meses, o pedagogo foi vice-reitor na gestão anterior da UFPA durante oito anos e encara a COP como uma oportunidade para elevar o reconhecimento da principal universidade do Pará para o restante do Brasil, amparado sobretudo nas pesquisas e conhecimentos científicos relacionados à bioeconomia.
Silva carrega ainda o simbolismo se ser o primeiro reitor autodeclarado negro desde a fundação da UFPA, em 1957. "Estou honrado de estar nessa tarefa, nesse momento, embora numa região com grande parte de população indígena e negra isso seja algo que poderia já ter acontecido há muito tempo".
A seguir os principais tópicos da entrevista:
Vozes da Amazônia
A UFPA, ao contrário do que historicamente era visto nas universidades brasileiras, hoje conta 80% de estudantes com origens nas classes mais pobres. E isso é um desafio, porque o objetivo é não só ter essas vozes dentro da universidade, mas também mantê-las. Temos uma política importante de permanência por meio de bolsas, mas ainda insuficiente para o tamanho da nossa população. A UFPA, hoje, é uma universidade de 50 mil alunos. É a segunda maior federal do Brasil, atrás apenas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Porém, no nosso caso, somos uma universidade multicampi, com 11 campus espalhados pelo Pará, além da sede na região metropolitana de Belém, com todos os desafios geográficos e sociais da região. Mas isso nos dá uma proximidade importante com um grande grupo de extrativistas e pequenos produtores que nos ajudam a desenvolver os conhecimentos que temos sobre a Amazônia.
Em termos de COP30, desde que Belém foi anunciada como sede em novembro de 2023, fizemos a leitura de que devemos participar da "blue zone", que é onde se decidem as coisas. Pedimos a inscrição como observador dentro desse espaço para representar a ciência da Amazônia. Tenho a impressão de que vamos conseguir, pois a nossa leitura é a de que uma COP na Amazônia não tem sentido se não tiver os amazônidas. Por isso, criamos um movimento na universidade que estamos chamando de Ciência e Vozes da Amazônia para levar a esse espaço de decisão as vozes da sociedade civil, dos quilombolas, indígenas, extrativistas e sindicatos.
A compreensão do povo do que sobrar dessa COP é mais importante do que qualquer legado de infraestrutura"
Assembleias pré-COP30
No primeiro evento do Ciência e Vozes da Amazônia, no dia 5 de fevereiro, recebemos mais de mil pessoas. Além de cientistas e da ministra do Meio Ambiente [Marina Silva], que fez uma fala online, tivemos gente de todos os Estados do Brasil. Vamos fazer pelo menos mais dois ou três encontros antes da COP30 para termos como contribuir da melhor forma. O que estamos fazendo é colocar o cientista que discute o clima junto com o sujeito que está sendo impactado pelas mudanças climáticas na sua ilha, na sua colônia de pescadores onde os peixes já não aparecem na mesma quantidade.
Demandas
Mesmo com todo o esforço, é impossível incluir todas as demandas que surgem dentro da pauta de uma COP30. Todos devemos ter compreensão disso. Com certeza vai ter conflitos de várias naturezas. Mas creio que isso também será um legado, o de saber lidar com um conjunto de pessoas que têm demandas importantes. Essas pessoas merecem todo o nosso respeito e apoio na medida do possível e até do impossível.
Não creio que todas as demandas entrarão na COP, mas o conhecimento sobre todas essas questões nos ajudarão a nos preparar para dialogar depois da conferência. E, se conseguirmos isso, o evento já terá exercido um papel estratégico importante.
Legado
O mais importante é o que faremos depois da COP30. O que vamos fazer para além de uma rua asfaltada, espaços mais arborizados. Não estou criticando o fato de haver um legado de infraestrutura. Tem que ter mesmo. Mas para mim só isso é algo limitado. O legado tem que ser espiritual. Não no sentido religioso, mas de compreensão do mundo, da realidade que estamos vivendo. Até pouco tempo atrás, era impensável imaginar que teríamos secas severas na Amazônia. E nos últimos dois anos tivemos secas severas no estado do Amazonas, secando o rio Amazonas, e também rios importantes no Pará, o que comprometeu a mobilidade e sobrevivência de ribeirinhos e pessoas que moram dentro dos rios e dependem deles.
Lembrando a música ["Sobradinho", de Sá e Guarabyra], o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão. Achávamos que era uma anedota, mas estamos observando como as interferências humanas estão afetando os ecossistemas no Nordeste, no Norte, no Sul. Portanto, no meu entendimento, a compreensão do povo do que sobrar dessa COP é mais importante do que qualquer legado de infraestrutura.
Se conseguirmos colocar na mentalidade do povo de que teremos de criar uma política forte de adaptação, pela qual teremos que respeitar os nossos rios e fauna, e que nós, pesquisadores e cientistas, temos a responsabilidade de ensinar isso na universidade, vamos deixar um legado importantíssimo, inclusive capaz de fazer a crítica a outros tipos de legado.
Educação climática
Muito embora isso seja falado mais no contexto da educação básica, educação climática também é um tema a ser tratado pelas universidades. Temos muita pesquisa e pesquisadores de várias áreas que discutem biodiversidade na Amazônia. Tem mais de 45 instituições na Amazônia que discutem a questão do clima. Alguns que estudam mais do ponto de vista material, outros pela geociência, pela biologia. Mas, para além disso, tem o pessoal que trabalha com educação ambiental como filosofia e ciências humanas. Envolve quase todas as humanidades e até o pessoal das comunicações. Portanto, é um ensino importante não só para a educação básica.
Maior reconhecimento
A UFPA é, hoje, a universidade do mundo que mais estuda o dia a dia da Amazônia. Nos dá orgulho, pois antes era a Universidade de São Paulo (USP). Corremos atrás porque é o ideal considerando que é uma universidade da Amazônia. Digo como informação, mas também como um desabafo. Somos a segunda maior universidade federal do Brasil, mas não há um mapeamento dessa realidade no Sul e no Sudeste. Para se ter uma ideia, nós temos 150 cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado.
O que quero dizer é que somos umas das universidades com maior produção e quantidade de programa de pós-graduação do Brasil. Mas creio que há uma leitura enviesada quando se olha para a Amazônia, e o ideal seria até mesmo que esse conhecimento estivesse mais espalhado entre as demais universidades da região amazônica. Temos experiência e podemos ajudar muito. Seria muito bem-vindo um apoio maior para fazermos isso, seja do Estado brasileiro ou do Pará. Os nossos recursos são sempre limitados e acredito que poderíamos fazer muito mais se tivéssemos mais recursos e mais reconhecimento.
Bioeconomia
Estamos cumprindo o nosso papel de fazer as pesquisas e reunir os conhecimentos dos povos indígenas e quilombolas sobre a Amazônia. Temos a sistematização sobre tudo isso na UFPA. Nossos laboratórios, inclusive, têm produtos próprios que poderiam ser aplicados tranquilamente. Soluções relacionadas à cadeia do açaí, utilização dos caroços, etc. O problema é a escala. É preciso que o Estado se aproprie dessas tecnologias, tanto das que envolvem a infraestrutura e as técnicas quanto as tecnologias sociais. Temos muitas tecnologias sociais que já podem ser utilizadas.
Nós temos conversado sobre isso com as autoridades e empresários locais. Tenho tido audiências com o prefeito, com o governador, e nos colocado à disposição para ajudar no que for possível, sobretudo quando se trata de informação, de pesquisa, levantamentos, e até serviço e produtos.
Representatividade
O fato de ser o primeiro reitor autodeclarado negro da UFPA é um elemento interessante, alegre e triste ao mesmo tempo. Somos uma universidade que daqui a dois anos fará 70 anos. As universidades brasileiras todas são muito novas, mas 70 anos é um bom tempo e numa região em que a grande maioria da população tem origens indígenas e negras, ter o primeiro reitor negro quase 70 anos depois é algo realmente relevante porque os meninos começam a se ver em mim. Há poucos dias recebi alunos quilombolas e um deles pediu para sentar na minha cadeira. Ele perguntou se podia. Eu disse: "você pode e deve". E ele respondeu que se eu posso ser reitor, ele poderá também. Fiquei carregado de alegria e, ao mesmo tempo, preocupado com a responsabilidade que tenho. Imagine um camarada negro, de origem popular, assumir um espaço como esse. É extremamente desafiador, mas é muito animador.
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