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Quilombo e sesmaria

OESP, Vida, p. A17
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
04 de Nov de 2009

Quilombo e sesmaria

Marcos Sá Corrêa*

No Rio, um procurador regional da República ajudou sem querer a criar uma nova comunidade de ex-escravos no Vale do Paraíba, sugerindo ao dono de um sítio em Volta Redonda intitular-se quilombola. Era conversa de coquetel. Mas rendeu uma consultoria jurídica. E o sítio está pulando a cerca, rumo aos seus direitos ancestrais. E há quem reclame que as leis não pegam no Brasil. Eis uma que pegou antes do Descobrimento. E esbanja saúde política. É a que instituiu, em 1375, o regime português das sesmarias.

No reinado de D. Fernando, serviu para botar em produção terras arruinadas ou incultas. Nessa primeira encarnação, exigia que o dono explorasse seu pedaço de chão como devia ou o arrendasse por um "preço justo". Senão, arriscava-se a ver a propriedade confiscada em nome do interesse público.

Com ela, floresceram os sesmeiros, que faziam mais ou menos a olho nu e pistolão o que o Incra faz hoje com presidente, cinco diretores, auditores, chefes de gabinete e outras regalias de latifúndio burocrático. Para chegar aonde chegou, a sesmaria percorreu um longo caminho. Incorporou-se às ordenações afonsinas no século XV. Às manuelinas no XVI. Às felipinas no XVII.

ou pela Independência, embora a poeira dos séculos tivesse salpicado em suas páginas dispositivos que hoje causariam algum transtorno a assentamentos do Incra, se os novos sesmeiros levassem ao pé da letra requisitos da istração pombalina, como o prazo de cinco anos para provar que a terra doada está produzindo ou a proibição de vender o título da propriedade que ganhou.

Há 186 anos, o patriarca José Bonifácio quis incluir a revisão geral das partilhas feitas entre os amadrinhados da coroa portuguesa nos atos inaugurais do Brasil independente. Como a proposta não vingou, as sesmarias ficaram soltas por aí, "sem lei nem rei", como o cronista Pero de Magalhães Gândavo dizia que as coisas costumavam funcionar por aqui. Aclimataram-se a um território que, até pouco tempo atrás, parecia ter sempre fronteira de sobra para abrir, derrubar e, eventualmente, ar adiante, assim que as estradas, o progresso, a agricultura e os cartórios chegam para valer às áreas desbravadas, pioneiros em confins devolutos.

As sesmarias só se modernizaram há poucos anos, ao mudar de lado. Viraram política de quilombolas, índios, sem-terra, seringueiros, caiçaras, geraizeiros e outros títulos de exclusão social que têm raízes na terra. Em nome dessas tradições fundiárias, seus direitos prevalecem até sobre parques nacionais, florestas públicas e áreas protegidas. Há uma exceção notável, que está no site oficial do Ministério da Integração. Ali se ouve o ministro Geddel Vieira Lima explicar a política popular e progressista que abriu alas para os canais da transposição, transpondo, antes de mais nada, os índios e quilombolas que viviam nas margens do Rio São Francisco. A entrevista do ministro é um divisor de águas. Com ela se aprende que entregar a quilombolas 700 mil hectares do Parque Nacional do Jaú, na Amazônia, é uma coisa. Uma beirada do PAC, outra.

*É jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 04/11/2009, Vida, p. A17

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