O Globo, Opinião, p. 7
Autor: OLIVEIRA, Rafael Soares de
24 de Dez de 2007
Direitos coletivos
Rafael Soares de Oliveira
A divergência de opiniões está na essência das sociedades democráticas. O ideal é haver espaços para expor as idéias divergentes. O que constrange esse debate, porém, é a difusão de informações errôneas. E é sobre esse constrangimento que não só editores de jornais que selecionam articulistas, mas todos os brasileiros, devem refletir. Vejamos um exemplo .
Apesar de reconhecido pela Constituição (art. 68 dos ADCT), as comunidades remanescentes de quilombos têm tido seu direito ao território constantemente questionado no país por articulistas e jornalistas, no mínimo, descuidados com suas fontes.
Essas comunidades têm problemas - comprovados por pesquisa do MDS, "Chamada Nutricional Quilombola" - de nutrição, de falta d'água, esgoto quase inexistente e crianças com déficit de altura. Ao invés de obterem solidariedade, sofrem ataques de articulistas contra o critério de auto-identificação e os procedimentos para garantia da terra. Esses, erroneamente, supõem que um indivíduo, ao se auto-identificar como quilombola, ato contínuo, a a ter também uma terra em seu nome. E do erro se seguem ilações.
A boa crítica antes deveria informar que: 1. dizer-se comunidade quilombola não é ato infundado, aleatório e individual. É um procedimento coletivo de auto-identificação amparado em decisão do Congresso Nacional, que em 2002 ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, e lhe conferiu um status de lei por decreto em 2004. Além dessa ampla base, o direito coletivo de auto-identificação também se baseia em Decreto Presidencial de 2003.
Segundo, não basta uma comunidade quilombola se auto-reconhecer para ter a terra garantida. Fosse assim, não teriam sido expedidos apenas 31 títulos de propriedade coletiva entre 2003-2007. O extenso procedimento para regularização fundiária dirigido pelo Incra inclui informações técnicas de várias áreas da ciência, obtidas em campo e junto a instituições públicas e privadas e que são reunidas em um Relatório Técnico. Este relatório é tornado público para que qualquer interessado possa contestá-lo.
Outro exemplo de opinião infundada são as acusações contra a comunidade de remanescentes de quilombos que vive na Ilha da Marambaia há mais de 100 anos (dado demonstrado no laudo que realizamos para o governo federal) e é tratada como "invasora". Esta comunidade quer ter seu direito territorial e suas formas seculares de relação sustentável com a natureza reconhecidas. Infelizmente, a comunidade se vê na necessidade de denunciar à ONU, com farta documentação, as quotidianas violações de direitos que sofre, para as quais não obteve nem comentários de articulistas nem resposta.
Esses exemplos reafirmam a importância da opinião bem fundamentada, pois, sob o pretexto de refletir (seria uma forma obscura de filosofia?), alguns chegam ao ridículo de confundir inquilinos com proprietários, habitantes com visitantes... Isso sem falar das confusões sobre quem aconselha e quem dirige, e do desrespeito ao Ministério Público Federal e a outras instituições, sem se dar ao parco trabalho de conferir fontes. Pouco se avança ao se discutir direitos coletivos quando o interesse é acusar e denunciar "subversivos". Graças a Deus, e à custa de muito sangue, ou o tempo em que a "acusação" de socialista tinha a força da "santa inquisição" da ditadura.
Construímos um país sem "demônios", que permite partidos trabalhistas, socialistas, liberais, comunistas, social-democratas, cristãos e outros mais... E seremos, brasileiras e brasileiros comprometidos com a boa informação, a liberdade e o Estado de Direito, capazes de debater sobre todo tipo de direito coletivo, divergindo sem sermos levianos.
O Globo, 24/12/2007, Opinião, p. 7
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