OESP, Economia, p.B2
Autor: MING, Celso
29 de Jan de 2004
Moleza amazônica
O projeto de lei de expansão da Zona Franca de Manaus, já aprovado no Senado, é bem pior do que se imagina. É um disparate de proporções amazônicas que tenta mudar o paradigma da guerra fiscal em curso no País:
ela deixa de ser um conflito entre Estados para ser um conflito entre regiões.
A Zona Franca de Manaus (ZFM) já é, por si só, um animal esquisito porque, em vez de produzir apenas para exportação, como deve ser uma zona franca, produz quase exclusivamente para o mercado interno. O novo projeto de lei agora em tramitação na Câmara, estende o tratamento privilegiado vigente na ZFM, hoje restrita a 10 mil quilômetros quadrados, para 2,3 milhões de quilômetros quadrados do território nacional, de modo a cobrir todo o Estado do Amazonas (e não só Manaus), os Estados do Acre, Rondônia e Roraima mais a área de Macapá-Santana, no Amapá.
O despropósito não pára por aí. O novo projeto enfia em toda a área incentivada qualquer atividade industrial, bastando que a matéria-prima (não diz em que proporção) seja da região.
Vale a pena transcrever o parágrafo único do artigo 1.o do projeto de lei para se ter uma idéia melhor da abrangência do substitutivo do senador Arthur Virgílio (PFL-AM) cuja aprovação no Senado contou com as bênçãos do governo Lula:
Entra tudo - "As isenções fiscais previstas no caput deste artigo aplicar-se-ão aos bens elaborados com matérias-primas de origem regional, provenientes dos segmentos a seguir discriminados, observando-se a sustentabilidade ambiental da região: I - animal; II - vegetal; III - mineral; IV - agrosilvopastoril; V - agroindustrial; VI - biodiversidade; VII - máquinas e implementos agrícolas; VIII - cerâmicas e vidros."
A simples enumeração dos três primeiros segmentos, de onde seriam extraídas matérias-primas regionais, não deixa nada de fora. Lá estão os três reinos da natureza: animal, vegetal e mineral. Só ficam de fora as matérias-primas do reino espiritual.
Então fica assim: a Amazônia tem minério de ferro (reino mineral)? Tem.
Então haverá subsídios e renúncia fiscal para instalação de usinas siderúrgicas e de tudo o mais que seja produzido com aço - como automóveis, máquinas, aparelhos domésticos, etc.; se a região de Urucu tem gás natural (também um mineral), serão incentivadas não só novas indústrias petroquímicas, mas também fábricas de plásticos, de fertilizantes... e por aí vai.
Fica incompreensível por que os segmentos de "máquinas e implementos agrícolas" e os de "cerâmicas e vidros" sejam considerados produtores de matérias-primas.
Apenas para ativar a memória, aqui estão os principais favores fiscais de que gozam as empresas da ZFM: isenção do Imposto de Importação e do Imposto sobre Produtos Industrializados; isenção do Imposto de Exportação (quando houver); e possibilidade de outras reduções tributárias, como do ICMS e do IOF.
Atropelamento - Esse projeto de lei, aprovado para atender a interesses políticos do senador José Sarney (PMDB-AP) e defendido em plenário pelo senador Aloizio Mercadante (PT-SP), atropela pelo menos quatro dispositivos legais. O primeiro deles é a Decisão n.o 8 do Conselho do Mercado Comum, do Mercosul, que proíbe a criação de novas zonas francas nos países da área. Sancionar o que já foi aprovado pelo Senado significaria itir que a Argentina também possa estender a todo seu território nacional os incentivos dados hoje à Área Aduaneira da Terra do Fogo.
Contraria, também, o artigo 7.o do Tratado Internacional de Comércio (Gatt), que impede a concessão de vantagens fiscais com objetivo de desenvolvimento regional. A terceira vítima é lei de Responsabilidade Fiscal, que exige estudos de impacto tributário para matérias desse tipo, a que o projeto deixou de ser submetido.
Foi atropelada, também, a política industrial que o governo anunciou em novembro. Se os benefícios fiscais se estendem a praticamente toda atividade industrial, contando que se restrinja à Amazônia Ocidental, é claro que perde sentido a decisão de dar prioridade a outros setores industriais no País, como observa o presidente da Fiesp, Horácio Lafer Piva.
No mais, se é para patrocinar dessa maneira o desenvolvimento regional, não dá para entender por que ficaram de fora desse projeto de lei os Estados do Pará, Tocantins e o Mato Grosso.
A Superintendência da Zona Franca de Manaus acolheu o projeto com entusiasmo e o vai defendendo com argumentos capengas, como o de que não há renúncia fiscal quando a atividade econômica ainda não existe. "Se não há arrecadação antes, porque não há sobre o que arrecadar, não há também perda tributária" - diz o professor José Alberto da Costa Machado, da Universidade Federal do Amazonas.
Ontem, o projeto de lei foi retirado de pauta de votação na Câmara. Este pode ser o primeiro sinal da volta ao bom senso, pelo menos nesse assunto.
OESP, 29/01/2004, p. B2
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