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O eterno recomeço da luta Indígena, segundo Manuela Carneiro da Cunha

Sumaúma - https://sumauma.com/o-eterno-recomeco-da-luta-indigena-segundo-manuela-carneiro-da-cunha/
Autor: CUNHA, Manuela Carneiro da
19 de Mai de 2025

O eterno recomeço da luta Indígena, segundo Manuela Carneiro da Cunha
O percurso de uma das mais importantes pensadoras do Brasil conta largos capítulos da violenta relação do Estado e das elites com os povos originários em sua interminável busca pelo direito a existir - e mostra que eles enfrentam os mesmos inimigos há mais de 500 anos

Claudia Antunes, São Paulo
19 maio 2025

No fim dos anos 1970, a defesa dos direitos dos Indígenas catalisou um movimento amplo de oposição à ditadura empresarial-militar (1964-1985), então sob o comando do general Ernesto Geisel. A proposta de um decreto que, a título de "emancipar" parte das populações originárias, pretendia privá-las do seu direito à terra foi o detonador desse movimento. Na época, o regime ditatorial, baseado em um "Programa de Integração Nacional" lançado em 1970, rasgava a Amazônia com obras de estradas e hidrelétricas, a pretexto de promover o "desenvolvimento" e a ocupação do que chamava de "espaços vazios". Nessa ofensiva, povos como os Parakanã do Pará e os Yanomami de Roraima foram expulsos de seus territórios e mortos às dezenas pela violência e pelas doenças levadas pelos não Indígenas.

Entre os que formavam a linha de frente de resistência a essas políticas estava uma mulher pequena, de pele muito branca e fala cordial e firme, que ainda guarda, aos 81 anos, um leve sotaque lusitano: a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. Em 1978, Manuela participou da criação da Comissão Pró-Índio de São Paulo, uma de várias entidades que brotaram pelo Brasil em defesa dos povos originários. Na capital paulista, a Comissão trabalhava em estreito contato com o Centro Ecumênico de Documentação e Informação, o Cedi, onde estavam, entre outros, o antropólogo Beto Ricardo e sua mulher, Fany Ricardo. Em 1994, o Cedi, que já reunia um grande acervo sobre os povos originários no Brasil, deu origem ao Instituto Socioambiental, o ISA.

Eunice Paiva, viúva do ex-deputado federal Rubens Paiva, preso e morto pela ditadura em 1971, ofereceu sua colaboração à Comissão Pró-Índio. A mulher que teve sua história contada em Ainda Estou Aqui, ganhador em 2025 do Oscar de melhor filme internacional, havia acabado de se formar em direito. Manuela se lembra de Eunice como uma pessoa discreta, que não falava muito de sua luta pelo reconhecimento da morte do marido sob tortura, e dedicada à causa Indígena.

Em 1978, a mobilização civil levou a ditadura a engavetar a proposta de "emancipar" da "tutela" do Estado os Indígenas que já estivessem "aculturados", ou seja, supostamente eles não se distinguiam mais do restante das pessoas. Por essa tutela, que terminou com a Constituição de 1988, os Indígenas não eram considerados plenamente capazes de defender seus interesses. O problema, como perceberam os opositores da medida, é que na época os direitos dos povos originários - incluindo à terra - estavam vinculados a essa condição legal de "tutelados". Perdendo a tutela, eles perderiam o direito à terra, esta era a perversão da proposta.

A mobilização do fim dos anos 1970 se desdobrou em uma articulação de forças que se estendeu pela década seguinte e teve uma grande influência nos debates da Assembleia Constituinte instalada em 1987 para redigir a Constituição do novo período democrático. Lideranças Indígenas como Ailton Krenak, Marcos Terena e Álvaro Tukano deram peso a essa articulação. Foi fundada a União das Nações Indígenas (UNI), a primeira organização nacional dos povos originários. Em 1982, Mário Juruna (1943-2002) foi o primeiro Indígena eleito deputado federal, pelo PDT liderado na época por Leonel Brizola.

EM 1987, AILTON KRENAK SE PINTOU DE PRETO COMO SÍMBOLO DE LUTO E PROTESTO AO DEFENDER OS DIREITOS DOS INDÍGENAS JUNTO AOS DEPUTADOS CONSTITUINTES. FOTO: REPRODUÇÃO DO YOUTUBE

O trabalho de Manuela foi fundamental nas negociações que consagraram os direitos dos Indígenas na Constituição da Nova República. Anos antes, se apercebendo da falta de material consolidado sobre a história, a doutrina e as controvérsias envolvendo as legislações sobre os povos originários adotadas no Brasil desde a invasão portuguesa, em 1500, a antropóloga se lançou a uma pesquisa que resultou no livro Os Direitos do Índio - Ensaios e Documentos, publicado em 1987 pela editora Brasiliense. Boa parte do arsenal teórico para a redação do Capítulo VIII da Constituição de 1988, com seus artigos 231 e 232 sobre os Indígenas, veio desse livro organizado por ela.

Nos seus estudos, Manuela constatou que, com exceção de poucos períodos, as leis que vigoraram desde que o Brasil era uma colônia de Portugal reconheciam, de uma forma ou de outra, o direito dos Indígenas aos territórios em que viviam. O problema, como acontece até hoje, é que essas legislações sempre foram "violadas o tempo todo", como diz Manuela, a pretextos variados, por negócios privados e pelas próprias autoridades. Outro mal que atravessa os tempos é a hostilidade das forças políticas e econômicas locais a esses direitos territoriais.

A Constituição de 1988 é a primeira em que a condição de Indígena - e portanto os direitos inerentes a ela - não é tratada como transitória, destinada a desaparecer. Ainda assim, é como se a luta dos povos originários estivesse condenada a um eterno recomeço, a uma batalha contínua, para assegurar sua sobrevivência e suas prerrogativas básicas.

Manuela Carneiro da Cunha recebeu SUMAÚMA em sua casa, no bairro do Pacaembu, em São Paulo, para revisitar essa história coalhada de extermínios e também de espantosa persistência. É uma casa cheia de plantas, com dois gatos, um cachorro e muita memória cristalizada em livros e objetos, onde Manuela ainda trabalha um pouco todos os dias em seu escritório, depois de décadas como professora das universidades de Campinas, de São Paulo e de Chicago, nos Estados Unidos. É a mesma casa comprada pelos pais da antropóloga depois que vieram para o Brasil, em 1954.

LIVROS DE MANUELA, QUE CONSTATOU QUE O DIREITO INDÍGENA À TERRA FOI PREVISTO EM LEIS, SISTEMATICAMENTE VIOLADAS. FOTO: LELA BELTRÃO/SUMAÚMA

Maria Manuela Ligeti nasceu em Portugal porque seus pais, húngaros e judeus que se conheceram em Paris, buscaram abrigo naquele país em 1939, ano em que estourou a Segunda Guerra Mundial. Como outros internacionalistas, o pai lutara ao lado dos republicanos na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), que havia terminado com a vitória das forças reacionárias do general Francisco Franco.

A antropóloga herdou o sobrenome pelo qual é mais conhecida do primeiro marido, o historiador Marianno Carneiro da Cunha, professor da USP e reconhecido como um especialista em arte africana e afro-brasileira, que morreu em 1980. Por causa dele, que foi dar aula numa universidade na Nigéria, ela morou nos anos 1970 naquele país. Fez então as pesquisas que resultaram no livro Negros, Estrangeiros - Os escravos Libertos e Sua Volta à África. Publicada em 1985, a obra, reeditada pela Companhia das Letras, conta dos africanos que retornaram ao continente depois de libertados da escravidão no Brasil.

A antropologia não foi a primeira escolha de Manuela. Ela entrou no curso de física da Universidade de São Paulo e acabou se graduando em matemática em Paris. Lá, nos anos 1960, ou a frequentar os seminários do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) no Collège de . A formação da nova aluna atraiu o veterano, que usou fórmulas matemáticas para explicar os sistemas de parentesco e de pensamento de povos originários. Lévi-Strauss estimulou Manuela a seguir na antropologia. O trabalho com os Indígenas Krahô, que vivem entre o Tocantins, o Maranhão e o Piauí, resultou em sua tese de doutorado, publicada em 1978 no livro Os Mortos e os Outros - Uma Análise do Sistema Funerário e da Noção de Pessoa entre os Índios Krahô (editora Hucitec).

Manuela Carneiro da Cunha diz que não é tanto uma antropóloga de pesquisa de campo - embora seja impressionante vê-la falando, por exemplo, das artes agrícolas dos Indígenas da Amazônia, como fez num depoimento recente para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. "Eu me ocupo de teorias", define, o que acabou lhe sendo útil para a visão abrangente exigida na ação política.

Na década ada, no entanto, ela foi a campo, na região de Altamira, no Pará, para as pesquisas que resultaram no relatório "A Expulsão de Ribeirinhos em Belo Monte", também publicado em livro. Assinado por Manuela e Sônia Magalhães, da Universidade Federal do Pará (UFPA), o relatório surgiu de um pedido feito à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) por Thais Santi, procuradora federal na cidade paraense. Santi queria dar visibilidade às famílias expulsas dos beiradões e das ilhas do Rio Xingu para a construção da hidrelétrica de Belo Monte.

A partir do relatório, foi formado o Conselho Ribeirinho, que ou a representar essas comunidades tradicionais e propôs a criação de um território coletivo onde pudessem reconstruir seu modo de vida. A proposta virou uma condição para a renovação da licença ambiental da hidrelétrica, processo que se arrasta desde o vencimento da autorização original, em 2021. Até hoje, porém, a Norte Energia não comprou as terras necessárias para que o território Ribeirinho possa ser concretizado. "É uma frustração muito grande", lamenta Manuela.

Com o segundo marido, o antropólogo Mauro Barbosa de Almeida, ela organizou o livro Enciclopédia da Floresta - o Alto Juruá: Práticas e Conhecimentos das Populações (Companhia das Letras). Natural do Acre, Almeida acompanhou a luta de Chico Mendes e dos seringueiros que resultou na criação das primeiras Reservas Extrativistas. Como os seringueiros, os Indígenas "entenderam muito bem que o ambientalismo é um aliado", observa Manuela.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista com a antropólaga:

SUMAÚMA - Eu queria situar a época, no final dos anos 1970, que marcou o seu engajamento político com a questão Indígena. Nós ainda estávamos na ditadura, mas me parece que havia um clima de esperança. Como a senhora sentia isso?

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA - Eu acho que você tem razão quanto ao clima de esperança. Mas a época era sombria. Na década de 1970, a ditadura entrou em cheio na Amazônia, com estradas e hidrelétricas que atingiram duramente os povos Indígenas da região. Em 1978, um fato que chamou muita atenção foi a tentativa de estimular a "emancipação" de Indígenas. Soava como uma benesse, mas era uma armadilha. Era um projeto de decreto proposto pelo ministro do Interior da época, Rangel Reis. E a ideia era a de que havia Indígenas que já estavam muito, como se dizia, "aculturados", e que não existia razão para continuarem tutelados.

E a tutela vinha de quando?

Houve uma primeira tutela na época colonial. Depois, no Código Civil de 1916, já na República, ela era a mesma que a da tutela de menores entre 16 e 21 anos e de mulheres casadas. Todos esses eram tratados como "relativamente capazes". Ou seja, não eram "incapazes", como por exemplo crianças e doentes mentais cuja vontade não precisava ser respeitada. Era uma proteção negocial. Quer dizer, se os Indígenas fizessem uma transação que os prejudicasse, ela poderia ser anulada. Mas o que poderia ser uma proteção foi usado como opressão, primeiro pelo Serviço de Proteção aos Índios, o SPI [criado em 1910], e depois pela Funai [Fundação Nacional do Índio, que substituiu o SPI em 1967 e que alterou o nome para Fundação Nacional dos Povos Indígenas em 2023].

Um exemplo disso foi quando, em 1980, Mário Juruna foi convidado para ir à Holanda participar do Tribunal Russell sobre os Direitos dos Povos Indígenas nas Américas [originalmente uma iniciativa do filósofo britânico Bertrand Russell para expor, nos anos 1960, crimes de guerra dos Estados Unidos no Vietnã, esses eventos tiveram várias versões posteriores]. O governo tentou impedir que ele fosse, negando-lhe aporte, a pretexto de que era tutelado. Um absurdo completo.

Tudo o que aprendemos sobre a tutela foi com [o jurista] Dalmo Dallari (1931-2022). Foi ele também quem percebeu que, atrás da proposta de emancipação de Indígenas, se escondia a supressão de seus direitos territoriais.

EM MEIO À MOBILIZAÇÃO CONTRA A DITADURA, MÁRIO JURUNA FOI O PRIMEIRO INDÍGENA ELEITO DEPUTADO FEDERAL. FOTOS: ARQUIVO NACIONAL E MOREIRA MARIZ/FOLHAPRESS

Esses direitos eram reconhecidos desde quando?

Desde a colônia se reconheciam oficialmente os direitos territoriais dos Indígenas, embora toda sorte de transgressões acontecesse. Na primeira Constituição da República, a existência de Indígenas não é nem sequer mencionada. Em 1934, na nova Constituição, a posse Indígena sobre suas terras é estabelecida. Esse mesmo direito está reafirmado em todas as Constituições seguintes. Todas elas - 1937, 1946, 1967 etc. - contêm essa proteção que, aliás, vai sendo mais definida. Só na de 1967 é que se declara que as Terras Indígenas são propriedade da União. E só no artigo 198 do texto constitucional de 1969 fica reconhecido o direito dos Indígenas ao "usufruto exclusivo das riquezas naturais [de suas terras] e de todas as utilidades nelas existentes". Claro que, como em épocas anteriores, essas legislações foram violadas o tempo todo.

Outro exemplo: a verdadeira guerra que existe hoje em Mato Grosso do Sul data do começo dos anos 1940. Já constavam nas Constituições de 1934 e de 1937 os direitos de posse Indígena sobre suas terras quando o presidente Getúlio Vargas instalou uma colônia agrícola em cima de terras dos Guarani Kaiowá.

Então em 1978 houve uma reação a esse decreto de emancipação?

O decreto era, no fundo, uma tentativa de pegar as Terras Indígenas. Em 1978, não se tolerava nenhum dissenso, mas o decreto provocou muito protesto. Nas grandes cidades, evidentemente. Em particular, houve uma grande campanha pela demarcação das Terras Indígenas, que estava prevista no Estatuto do Índio, de 1973. O Estatuto, elaborado pelo jurista Themístocles Cavalcanti, tem grandes virtudes, apesar de ainda fazer distinções entre Indígenas "silvícolas" [que viviam na floresta] e "integrados". Bem, em 1978 muito da indignação nacional desaguou nessa questão Indígena. Foi um movimento nacional, sobretudo urbano, mas extremamente importante. Os carros em São Paulo circulavam com adesivos pela demarcação das Terras Indígenas. Na época foi também criada a comissão pela criação do Parque Yanomami, com a fotógrafa Claudia Andujar, o antropólogo Bruce Albert e o Carlo Zacquini, que era um religioso. Fizemos um ato público no Tuca, o teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e apareceu um monte de gente, de artistas a políticos, celebridades da época. Foi impressionante.

Foi um movimento que teve uma amplitude que ninguém esperava, funcionou como uma espécie de canal de protesto geral. Havia antropólogos, evidentemente, e também juristas. O Dalmo Dallari foi muito importante desde o começo. Vou contar uma anedota que acho que é significativa. Os parlamentares da época em geral não tinham ideia do que era um Indígena. Lembro-me que um deles chegou para um Indígena e disse: "Eu, parlamentar, você, índio. Você entende o que eu falo?". O nível de conhecimento era zero, menos, é claro, dos parlamentares que vinham de áreas onde havia cobiça por essas terras. Conto isso só para dar uma ideia do quanto foi surpreendente essa adesão maciça. Teve uma tal repercussão que engavetaram o projeto de decreto.

Foi nesse contexto que Eunice Paiva começou a atuar em defesa dos direitos Indígenas?

Eu sempre me perguntei: por que, com a história de vida terrível da Eunice, ela foi trabalhar na questão Indígena depois de se formar em direito? Isso para mim sempre foi uma incógnita, porque ela não tinha uma razão evidente para entrar nessa questão. E entrou fundo, quando começou a atuar como advogada.

E foi nessa mesma época?

Foi pouco depois. A gente criou a Comissão Pró-Índio de São Paulo, em 1978 mesmo, e pipocaram várias associações do mesmo tipo pelo país. Na Bahia surgiu a Anai, a Associação Nacional de Ação Indigenista, que continua ativa, sobretudo com os conflitos enormes que existem no sul da Bahia. No caso da Eunice, a gente não tinha total consciência da história dela. Não sabíamos tudo. Ela veio, creio que foi em 1982, numa reunião da Comissão Pró-Índio, se apresentou como advogada, e daí em diante ajudou em várias questões. A comissão tinha antropólogos, médicos, advogados. Tem um relatório de 1983 em que ela assina como coordenadora da assessoria jurídica. Ela se envolveu a fundo em todas as diferentes questões daquela década, e com todas as associações que solicitaram sua ajuda. Fez intervenções no Projeto Carajás da Companhia Vale do Rio Doce, em que a antropóloga Lux Vidal defendia os direitos Indígenas com vários de seus alunos; nos Yanomami, com a Comissão Pró-Yanomami (CY); no projeto Polonoroeste [implantado perto do fim da ditadura] em Rondônia, com Betty Mindlin e Carmen Junqueira.

Quando a senhora diz que não tinha ideia exatamente da história da Eunice, não sabia que ela era viúva do Rubens Paiva?

Sabia sim, mas não sabia a história completa. Ela nunca falava disso com a gente. E se dedicou muito à questão Indígena. Eu, retrospectivamente, posso imaginar que foi nesse movimento que começou em 1978, que foi um desaguadouro de todas as frustrações e indignações contra o regime.

Quando foi seu último contato com Eunice?

Nosso contato foi, sobretudo, em toda a década de 1980. Eu também viajei para Chicago em 1994 e fiquei 15 anos lá, embora viesse sempre para cá. Quando a Eunice se percebeu com Alzheimer, ela foi com os filhos se declarar incapaz, uma coisa também muito digna. A dignidade dela era incrível. Era uma grande senhora.

Em 1983, a senhora e Eunice Paiva publicaram um artigo juntas sobre os Pataxó Hãhãhãe do sul da Bahia. O artigo denunciava a invasão de um território que havia sido demarcado em 1926. Ainda há violência contra Indígenas na região e territórios que esperam a demarcação.

Na época, a briga era um pouco diferente, mas no fundo é a mesma coisa. Porque, mesmo que haja alguns territórios demarcados, eles estão invadidos. E outros lugares que já estão delimitados esperam a homologação. O processo de demarcação, desde 1996, tem várias etapas. A primeira é a proposta fundamentada de delimitação, que a presidência da Funai publica e que, após um período aberto para contestação, é enviada para o ministro da Justiça emitir uma portaria declaratória. Todos os territórios nessa região do sul estão delimitados, ou seja, perfeitamente prontos para avançarem no processo de demarcação, e isso há dez, 15 anos. Os Tupinambá de Olivença já tiveram três minutas prontas para a portaria declaratória desde 2016, e ela não é assinada. Quanto mais tempo fica sem definição, pior. Ali é uma zona muito cobiçada, e tem a praia, que é um chamariz imobiliário. Então, num certo sentido, a situação de 1983 continua, o que é um absurdo.

EUNICE PAIVA (DE SAIA AZUL) VISITA A TERRA KRIKATI, NO MARANHÃO, EM 1995. ANTES, ELA E MANUELA ATUARAM NA COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. FOTO: ARQUIVO VITÓRIA ELIZABETH

Manuela, voltando aos anos 1980, a reação que levou a ditadura a engavetar o decreto de emancipação acabou conduzindo ao movimento que desembocou na Constituinte. Além do decreto, os projetos da ditadura na Amazônia também engrossaram a indignação?

Eu acho que sim, que isso ficou mais visível. Porque, com a repercussão do movimento de 1978, de repente os jornais começaram a falar sobre Indígenas e a publicar o que estava acontecendo. Foi a época de expulsão dos Parakanã para a construção da hidrelétrica de Tucuruí. Vários povos foram enxotados para outro lugar. E isso, a partir de 1978, começa a ser assunto de jornal nas capitais. O principal assunto era a Amazônia, mas também se falava dos Indígenas do Nordeste, que estavam se manifestando. E não por acaso, já que são os lugares mais antigos de colonização, e é a chamada colonização que desde sempre mais invade áreas Indígenas.

Aí tem um ponto mais estruturante que eu acho importante conhecer. A legislação colonial tinha proteção às Terras Indígenas. Proteção que foi violada, porque havia pretextos para entrar, tirar as pessoas. Mas tinha uma legislação favorável, digamos assim. Com a Independência, apesar de os Indígenas terem sido adotados como símbolo da Independência, foi a pior época para eles. Isso porque em 1834 se dá às províncias capacidade de também legislar sobre a questão Indígena. E a gente sabe até hoje que os governos locais são sempre anti-Indígenas. Só um século mais tarde, em 1934, é que retorna a competência exclusiva da União de legislar sobre questões Indígenas. "Indígena é federal", como se costuma dizer. E isso significa que a Força Nacional, a Polícia Federal e até a Polícia Rodoviária Federal têm que defendê-los. Por isso, a Polícia Militar, que depende do governo estadual, não pode ser, não deveria ser, usada contra Indígenas, como lamentavelmente continua ocorrendo.

O governador da Bahia resistiu agora ao envio da Força Nacional pedido pelo Ministério dos Povos Indígenas para proteger os Indígenas do sul do estado...

Isso é um problema grave. As polícias militares são estaduais e são militares. E são, portanto, completamente independentes da Polícia Federal até agora. O atual Projeto de Emenda Constitucional da Segurança Pública tenta mudar um pouco isso. Quem tem o poder de decisão sobre questões Indígenas é sempre a União. Claro que isso também é violado, e que os estados deram títulos sobre Terras Indígenas: há inúmeras transgressões, mas é importante saber que existe a decisão constitucional de que assuntos Indígenas são decididos pela União.

Na realidade, a Força Nacional foi enviada para vários embates recentes em Mato Grosso do Sul, e também para desalojar invasores, como na Terra Indígena Apyterewa, dos Parakanã. Enfim, é uma longa e violenta história, mas ela continua se repetindo. Porque os governos locais, municipais ou estaduais são sempre inimigos dos Indígenas: quem está perto sempre cobiça suas terras ou seus recursos. No caso da Apyterewa, tinha um rebanho de Bois imenso de propriedade dos invasores que estava dentro da área Indígena. Muitos invasores, os mais poderosos, não invadiam pessoalmente, mas botavam todo o gado lá dentro. E essas coisas continuam. Há uma longa história atrás.

Parece uma eterna repetição...

Tem um historiador, José Oscar Beozzo, que diz uma coisa que, a posteriori, fica óbvia: a gente fala muito pouco da escravidão Indígena, mas teve muita escravidão Indígena no Brasil. A mão de obra Indígena era muito importante para a colônia. Os paulistas se notabilizaram por consegui-la. Os escravizados africanos começaram a ser trazidos um pouco mais tarde, mas em lugares mais pobres os escravizados africanos não chegavam. Embora os Indígenas tivessem sido declarados livres repetidamente desde o início da colônia, a escravidão deles se valia de vários pretextos legais, além de disfarces: os Indígenas "istrados", supostamente livres, constavam de dotes e testamentos. O que o historiador Beozzo faz notar é que o que se queria extrair dos Indígenas era trabalho forçado.

Em 1850, só em pleno período imperial, a coisa muda com a Lei de Terras. Essa lei acaba com as sesmarias [as concessões de terras feitas pelos portugueses] e determina que as terras terão que ser compradas. Daí em diante, a ênfase não é mais no trabalho e escravidão Indígenas, e sim na posse das suas terras. Na nova legislação, as Terras Indígenas estão protegidas, mas isso também é desobedecido por meio de vários artifícios. Essas terras am a ser extremamente importantes e alvo de cobiça privada.

A gente esquece essa diferença, entre os Indígenas cobiçados como mão de obra - sobretudo aqui em São Paulo, os bandeirantes eram grandes apresadores de escravos Indígenas, notadamente os Guarani ou Carijós - e o momento depois de 1850, em que as Terras Indígenas é que aram a ser cobiçadas. E agora não se está mais aí para a mão de obra Indígena, mas todo mundo continua tentando se apropriar das Terras Indígenas. É uma coisa que se prolonga, que tem uma raiz histórica incrível.

Em relação às legislações anteriores, o que muda qualitativamente na Constituição de 1988?

Várias coisas mudam. É a primeira vez que tem um capítulo sobre os Indígenas na Constituição, o que é uma novidade absoluta. Esse capítulo tem apenas dois artigos, o 231 e o 232. O primeiro é grande e começa dizendo que se reconhecem aos Indígenas todos os direitos, à terra primeiro. E define claramente o que seja terra, que não é só a terra onde se mora, mas é a terra necessária à sua reprodução cultural e também ao seu bem-estar. É uma definição ampla e adequada do que é um território Indígena, que não é simplesmente um lugar de moradia, uma aldeia. E naquela época, no começo dos anos 1980, o governo queria demarcar territórios em ilhas, como no caso dos Yanomami. Então, essa formulação do artigo 231 do que vem a ser uma Terra Indígena é muito importante.

E o fim da tutela?

Isso também foi uma mudança muito importante, que está no segundo e menor artigo, o 232. O artigo diz que os "índios, suas comunidades e organizações" podem entrar em juízo sozinhos. Até então, era a Funai que podia entrar em nome deles, e a Funai era muitas vezes aquela instituição que estava justamente prejudicando os Indígenas. O artigo 232 ou na Constituinte como uma carta no correio, como dizem os ses, sem contratempos, ninguém prestou atenção. Mas o Ministério Público ficou encarregado de participar desses processos, apoiando, evidentemente, os Indígenas. Eu lembro que o Dalmo Dallari dizia que a atuação do Ministério Público iria mudar, porque antes de 1988 ele não se distinguia da Advocacia da União. Então, com a nova Constituição, não só os Indígenas podiam entrar em juízo diretamente como o Ministério Público ou a ser encarregado de ajudar.

E a definição do direito dos Indígenas a seu território como originário, ou seja, anterior à existência do Estado brasileiro, isso é novo também, ou já estava assim nos documentos anteriores?

Não. Isso é uma grande novidade na história das nossas Constituições e, ao mesmo tempo, o resgate de um entendimento muito antigo. Desde a República, e em muitos círculos até hoje, a ideia é que Indígena era um estado transitório. O Indígena era uma pessoa que inexoravelmente iria virar um qualquer do povo. Portanto, sem direitos territoriais específicos. E, por isso, o dever do Estado nas outras Constituições era proteger essa transição. No começo, por meio da catequização, e, depois, por um processo mais laico, mas a ideia era sempre de "civilizar" o Indígena, trazê-lo à comunhão nacional, como se dizia. Com o artigo 231, se reconhece, logo no início, a existência - que não é uma existência transitória, mas é uma existência que está sendo reconhecida - de um povo, de uma língua, de uma cultura. Ou seja, o Indígena não tem mais como destino oficial ser assimilado pela maioria.

Mas de onde vem a expressão "direitos originários" usada na Constituição?

Isso é totalmente novo numa Constituição, mas não é novo na doutrina. Foi um grande jurista, o João Mendes Júnior (1856-1923), que dá nome à praça onde está o Fórum de Justiça de São Paulo, quem defendeu que os títulos Indígenas sobre as suas terras eram direitos originários, congênitos, como ele falava. Mendes Júnior se baseia na tradição colonial. Na época do Descobrimento, travou-se uma disputa jurídica: afinal, os Indígenas eram ou não eram senhores legítimos das suas terras? Havia um grande debate, e prevaleceu, com o frei dominicano espanhol Francisco de Vitória, que sim, que eles eram os senhores dessas terras. E isso continua na legislação colonial. Em particular, num alvará que é muito citado, de 1680, que diz textualmente que eles são os naturais senhores das suas terras. O João Mendes Júnior retoma essa tradição e faz uma série de conferências em 1912 expondo essa tese do direito originário.

Na aplicação da Lei de Terras de 1850, por exemplo, havia gente, sobretudo nas províncias, que interpretava que os Indígenas se transformavam em seres iguais a todos os outros e que, portanto, perdiam suas prerrogativas. Isso foi muito usado, sempre nessa visão de que o Indígena era transitório. Na Constituinte de 1988, a ideia inspirada no João Mendes também ou, creio que em parte, porque ninguém sabia o que eram direitos originários, entendeu? Foi, aliás, um acaso a gente achar o livro dele. Rubem Santilli Brando, um médico maravilhoso, que era da Comissão Pró-Índio e que morreu num acidente no território Yanomami, era um frequentador de sebos. Ele achou o texto e trouxe para a gente da Comissão Pró-Índio, que reproduziu o fac-símile.

Agora, a senhora também costuma mencionar que nesse capítulo da Constituição a questão que deu mais polêmica foi a da mineração.

Mineração e hidrelétricas, mas sobretudo mineração. E até hoje é a mesma coisa. Porque a Constituição disse que isso tem que ser regulamentado. Durante o processo constituinte, a gente fez uma aliança com os geólogos brasileiros, que eram contra as autorizações de lavra que estavam sendo dadas ou registradas no órgão competente do Ministério de Minas e Energia. O que a gente defendia, junto com a Coordenação Nacional de Geólogos (Conage), era que a mineração em área Indígena somente fosse autorizada se tivesse uma importância estratégica demonstrável e se não existisse outro lugar no Brasil onde o mineral pudesse ser encontrado. Ou seja, se não existisse outra opção. Não conseguimos que essa tese fosse aceita. Na época, o projeto Radam (Radar na Amazônia) havia localizado vários possíveis depósitos minerais na região, e houve uma corrida imediata a pedidos de pesquisa e lavra na Amazônia inteira e propostas de lei para permitir a mineração em áreas Indígenas. Num dos pareceres que fez, Eunice Paiva menciona um exemplo que me chamou muita atenção.

E o que ela escreveu?

Ela conta que uma subsidiária da Vale do Rio Doce conseguiu uma autorização de pesquisa de cassiterita no território Yanomami em 1978. Um ano depois, a própria Vale renunciou a pedir a lavra e fez todo um arrazoado do prejuízo que isso estava causando aos Indígenas e ao meio ambiente. E ainda dizia que a cassiterita poderia ser achada em outros lugares do Brasil. A Vale recomendava que fosse feita, na área que eles pesquisaram, uma reserva minerária - e é isso exatamente que os geólogos estavam propondo na Constituinte, que as áreas Indígenas fossem por definição reservas minerárias. Na época, estavam vindo todas as multinacionais para minerar aqui, e os geólogos diziam que nós tínhamos que manter reservas para o país e que elas poderiam coincidir com as Terras Indígenas. E é extraordinário que em 1979, antes da Constituinte, a própria subsidiária da Vale do Rio Doce tenha feito a mesma proposta. Eu não sabia dessa história, li no parecer da Eunice.

Essa proposta foi derrotada e a regulamentação acabou ficando indefinida. A briga é grande também porque os garimpeiros sempre tiveram muita força no Congresso. As mineradoras estão mais fortes agora, e desde sempre argumentam que não deixam tantos estragos de saúde, humanos e ambientais quanto os garimpos ilegais. Mas os estragos das mineradoras, após os desastres de Mariana e de Brumadinho, são igualmente senão mais aterradores, e as eventuais compensações não chegam aos que foram mais lesados. Permitir mineração em Terras Indígenas só se ficar demonstrado não haver alternativas no território nacional e o minério ser realmente imprescindível para o país ainda é a melhor proposta.

Quando a Vale saiu do território Yanomami [no final dos anos 1970], deixou os garimpeiros lá. Foi a primeira invasão garimpeira.

ENTRE OS HORRORES PROMOVIDOS POR BOLSONARO, MANUELA CITA A PENETRAÇÃO DO GARIMPO EM ÁREAS INDÍGENAS, COMO NA TERRA YANOMAMI. FOTO: LALO DE ALMEIDA/FOLHAPRESS

A senhora conta num artigo que seu livro sobre os direitos dos Indígenas era dirigido aos Constituintes. Sua atuação na época foi muito intensa, não?

É que na Constituinte eu era presidenta da Associação Brasileira de Antropologia. Então, representei os antropólogos e participei muito, contando sempre com o apoio do senador Severo Gomes (1924-1992) e fazendo aquela aliança com os geólogos e com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A psicóloga Carolina Bori (1924-2904), que era presidenta da SBPC, foi uma pessoa fundamental naquele momento. A entidade teve um papel importante de resistência à ditadura. E ela, particularmente, era uma pessoa muito corajosa. No plano jurídico, Dalmo Dallari e o grande constitucionalista José Afonso da Silva deram uma ajuda fundamental.

Os ataques à Constituição começaram assim que ela foi promulgada?

Houve um momento de graça nos anos imediatamente posteriores à Constituição que foi interessante. Um Indígena Xukuru que viveu por um período aqui em São Paulo, Francisco de Assis Araújo, resolveu retomar legalmente a terra deles na região de Pesqueira, em Pernambuco. Era uma área muito fértil, bastante próxima do Recife, em que havia muitas fazendas. Mas os Xukuru conseguiram assim mesmo a demarcação de sua terra. Só que a União tinha que tirar os fazendeiros, e para isso precisava indenizar as benfeitorias, seguindo a legislação da época. Mas ele foi um visionário e acreditou nas normas constitucionais.

Bom, esse período de graça continua até 1992, quando acontece a Cúpula da Terra no Rio de Janeiro. Nesse contexto, o [presidente Fernando] Collor homologa a terra Yanomami, um território enorme e sem ilhas. Foi um momento muito impactante.

E aí houve uma reação?

Imediata. Em Roraima, eles imediatamente pediram uma legislação que permitisse mineração e garimpo.

Em 1996, já no governo de Fernando Henrique, o ministro da Justiça, Nelson Jobim, argumentou que era preciso mudar o rito de demarcação e dar lugar ao contraditório. O decreto 1.775, daquele ano, introduz um período depois da publicação da delimitação do território, que é feita pela Funai, para quem queira contestar esses limites. Depois desse período é que vai para o ministro da Justiça fazer a portaria declaratória. Só então é feita a demarcação física e, finalmente, a homologação pelo presidente da República. Eu lembro que na época se achou que o decreto era muito ruim, que ia atrasar o processo. Hoje eu acho que foi uma coisa boa porque dá mais segurança. Realmente atrasa, mas dá maior segurança. Então sempre houve reações, mas elas estão cada vez mais fortes, e na época do [extremista de direita Jair] Bolsonaro foi um horror.

Em um de seus artigos, você menciona o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol como um marco no retrocesso pós-1988...

Porque um dos ministros de então, que se chamava Direito [Carlos Alberto Direito, 1942-2009], inventou essa condição que não existia, o marco temporal. E era um absurdo total desde o começo. Simplesmente decretava que os direitos territoriais Indígenas só se aplicavam àqueles que estivessem de posse de suas terras na data da proclamação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Foi inventado em 2009 na confirmação no STF da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, de Roraima, decretada em 2005.

Isso imediatamente provocou controvérsias. Um agravo [recurso que permite questionar a opinião dada por um juiz ao longo de um processo] perguntou ao Supremo se a tese era válida para todas as Terras Indígenas. A resposta do Supremo foi que não valia, que a tese do marco temporal era só para aquele julgamento particular da TI Raposa Serra do Sol, e não era extensiva a outros casos. Mas fazendeiros, principalmente os do Centro-Oeste e do Sul do Brasil, que tinham obtido títulos sobre áreas Indígenas desde pelo menos 1940 e ficado temerosos, tinham gostado da tese. As organizações do agronegócio insistiram, e conseguiram ressuscitar a tese do marco temporal em 2012, sob a forma da Portaria 3033 da AGU, a Advocacia Geral da União. A AGU determinava a posição de todos os órgãos do Executivo. Questionado pelo Ministério Público Federal, o Supremo negou validade à portaria da AGU. Mas em 2017, sob o governo de Michel Temer, o parecer 001 da AGU restabeleceu a portaria.

Essa longa disputa parecia resolvida em setembro de 2023, quando o STF, por fim, declarou inconstitucional a tese do marco temporal, e isso para todo e qualquer processo. Mas o Congresso Nacional, numa atitude de desafio ao STF, aprovou em tempo recorde uma nova lei que o restabelecia. A queda de braço ainda continua.

Essa tese tem o perverso condão de apagar os direitos territoriais de povos expulsos de suas terras, que saíram contra sua vontade. Permite esquecer, digamos assim, dos muitos que foram expulsos pelas iniciativas do regime militar ou por invasores.

A LUTA INDÍGENA VIVE UM MOMENTO "MUITO DIFÍCIL, BASICAMENTE POR CAUSA DA COMPOSIÇÃO DO CONGRESSO", AVALIA MANUELA. FOTO: LELA BELTRÃO/SUMAÚMA

A senhora já disse que o ápice da reação à Constituição de 1988 foi o governo Bolsonaro [2019-2022), que não demarcou nenhuma terra e estimulou a bancada anti-Indígena no Congresso. Que outros retrocessos foram marcantes no período?

Bolsonaro anunciou antes mesmo da eleição que não haveria nem mais um centímetro de demarcação. Cumpriu. Mas ele fez várias [outras] coisas que foram destrutivas. Seu governo considerava que terras que não estivessem homologadas não existiam, e com isso houve todo tipo de estímulo a invasões e grilagens, inclusive com o uso do Cadastro Ambiental Rural [cuja gestão foi transferida do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura e Pecuária]. Isso violava não só a Constituição, que diz que os direitos dos Indígenas são originários, e que portanto independem da demarcação, o que é reconhecido pelo Supremo em vários acórdãos. O Estatuto do Índio de 1973, que nunca foi revogado, já afirmava que a proteção da União às Terras Indígenas independe da demarcação.

Bolsonaro não queria nem que a saúde Indígena chegasse aos que não estivessem com os territórios demarcados. Foi um período muito nefasto, que também protegeu o garimpo, que se tornou ainda mais prevalente em muitas áreas Indígenas, como nas terras Munduruku, onde crianças estão doentes pelos efeitos do mercúrio, como mostraram estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Foi uma deterioração de tudo.

Considerando que o Estatuto é da ditadura, é possível dizer que Bolsonaro se distanciou até da doutrina militar sobre os Indígenas?

Eu não conheço direito a doutrina dos militares, só conheço os efeitos. E eles, grosso modo, têm uma visão dos Indígenas como sendo possíveis ameaças à soberania. E isso acho que vem desde o general Golbery [do Couto e Silva, tido como um dos principais formuladores da geopolítica do Exército]. Durante muito tempo, o Conselho de Segurança Nacional tinha que avaliar as propostas de demarcações. Havia uma espécie de medo difuso de que os Indígenas não fossem patriotas.

Em um livro excelente, que se chama As Muralhas do Sertão, Nádia Farage mostra como a presença Indígena foi usada pelo Barão do Rio Branco para defender a soberania brasileira nas fronteiras. Eles serviam de muralha justamente contra, por exemplo, a Guiana inglesa. Então, no comecinho do século 20, quando o Barão do Rio Branco negociou todos esses limites, os Indígenas foram usados como prova da brasilidade do território. Agora, durante o período militar, a gente sentia uma desconfiança de muitos militares em relação aos Indígenas, apesar do que dizia o Estatuto. Eu acho que isso deve, provavelmente, perdurar em alguns setores. E que é importante se abrir para uma outra visão e, sobretudo, para ver a importância das Terras Indígenas e, portanto, do manejo Indígena das suas terras, na conservação das Florestas, e na mitigação da mudança do clima. Recentemente, uma pesquisa feita na Universidade Federal de Santa Catarina por Marina Hirota, apoiada pelo Instituto Serrapilheira, mostrou que as Terras Indígenas da Amazônia são responsáveis pelas chuvas que irrigam vários estados do Centro-Oeste, mas também o Paraná. Portanto, são fundamentais para a agricultura.

Quando a senhora acha que as causas Indígena e ambiental se juntaram?

Olha, eu não posso dizer que foi nesse ou naquele momento. Mas um momento exato em que eu sei que isso aconteceu foi com os seringueiros. Porque a luta tradicional dos seringueiros era por meio dos sindicatos. Chico Mendes era líder do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, e dois outros que foram assassinados antes dele também. Mas Chico Mendes organizou, com o Conselho Nacional dos Seringueiros [hoje Conselho Nacional das Populações Extrativistas], uma reunião em Brasília, em 1985. O Mauro [Almeida] estava lá, a [antropóloga] Mary Allegretti também. E nesse momento o Chico Mendes juntou as duas causas. Ele disse: "Nós estamos defendendo a Floresta, nós não queremos que as nossas Florestas virem pasto", e isso é também uma causa dos ambientalistas. Foi antes mesmo de se falar do clima. Foi feita essa junção em 1985, pelo Chico Mendes, presencialmente, falando explicitamente.

Quando se transformou no Instituto Socioambiental, o Centro Ecumênico de Documentação e Informação adotou um lema significativo, "Socioambiental se escreve junto". Em suma, eu acho que essa junção foi feita de vários modos e em diversos momentos, e que os Indígenas do Acre, que logo depois do assassinato de Chico Mendes [em 1988] formaram com os seringueiros a Aliança dos Povos da Floresta, também entenderam bem que o ambientalismo era um aliado.

E como a senhora vê a Câmara de Conciliação do Gilmar Mendes, que justamente traz de volta essa possibilidade de indenização pela posse em Terras Indígenas? Ele mediou um acordo que envolveu a indenização de ocupantes do território Ñande Ru Marangatu, dos Guarani Kaiowá de Mato Grosso do Sul.

A questão da indenização da terra nua, antiga reivindicação de fazendeiros, acabou aparecendo no acórdão do STF sobre a inconstitucionalidade do marco temporal, introduzida pelo Alexandre de Moraes, embora com condições.

Aqui eu tenho que fazer uma pequena retrospectiva. A emenda constitucional no 1, de 1969, afirma que qualquer título de posse, domínio ou ocupação em cima de uma Terra Indígena é nulo juridicamente e não pode ser objeto de indenização pela União. Quando chegamos à Constituição de 1988, essa nulidade permanece, mas o 6o parágrafo do artigo 231 ite indenizar as benfeitorias "derivadas da ocupação de boa-fé".

No caso obscuro de Ñande Ru Marangatu, o Estado brasileiro concordou com a indenização da terra nua, embora tenha afirmado na ata do acordo mediado pelo Gilmar Mendes que não considerava que isso era um dever da União. Está todo mundo pisando em ovos porque o preço da terra em Mato Grosso do Sul é estratosférico.

É um precedente perigoso?

Eu acho que pode ser um precedente, sim. Até esse último acórdão do STF, quem tinha um título que era ilegítimo porque estava em cima de área Indígena - por exemplo, quem tinha recebido um título do governo de Mato Grosso do Sul, em alguma situação, ou tinha comprado de alguém que tinha recebido - podia pedir a indenização para quem deu o título, mas não para a União. E a União, quando fez essa indenização recente, disse que iria tentar cobrar dos governos estaduais e dos municípios, eventualmente. Então, é uma situação muito ruim.

E a tal da conciliação criada por iniciativa do ministro Gilmar Mendes foi acusada de ilegítima desde o começo, porque como é que se podem conciliar direitos originários, ou direitos Indígenas que são direitos fundamentais inscritos na Constituição, com outras pretensões? Não dá. E no meio disso, um pouco para mostrar serviço, veio essa indenização da terra nua para aquele território Ñande Ru Marangatu específico.

NÃO DÁ PARA CONCILIAR DIREITOS ORIGINÁRIOS COM OUTRAS PRETENSÕES, DIZ MANUELA SOBRE A CÂMARA DE CONCILIAÇÃO DE GILMAR MENDES. FOTO: GUSTAVO MORENO/STF

Mas a senhora concorda com a avaliação de que este é o momento mais difícil desde 1988 para a luta Indígena?

Está muito difícil, muito difícil. Por causa da composição do Congresso, basicamente.

A posição do Gilmar Mendes é uma posição realista, no sentido de que já que o Congresso está querendo, vamos tentar negociar, ou é uma posição incompreensível, vinda de um juiz da Suprema Corte que tem que zelar pela Constituição?

Gilmar Mendes foi defensor dos direitos territoriais Indígenas quando trabalhava, antes de 1988, para poupar a União de indenizações exigidas por invasores com títulos oficiais, geralmente obtidos de governos estaduais. Parece ter mudado de atitude no Supremo. O grande constitucionalista José Afonso da Silva escreveu um parecer em 2015 em que ele analisa o marco temporal [o parecer está no livro Direitos dos Povos Indígenas em Disputa, da editora Unesp]. Ele comenta e lamenta um julgamento em 2014 na Segunda Turma do STF [do recurso ordinário em mandado de segurança número 29.087] em que o ministro Gilmar Mendes abriu dissidência do voto do relator, o ministro Ricardo Lewandowski, que era favorável aos Guarani Kaiowá de Mato Grosso do Sul. Com isso, Mendes levou os demais membros da Segunda Turma a ignorar partes essenciais do laudo que demonstrava a razão dos Indígenas.

A senhora participou da Comissão Nacional da Verdade, que fez a estimativa, baseada em apenas dez grupos originários, de ao menos 8.350 Indígenas mortos. Hoje, daria para ter uma estimativa mais fiel à realidade?

Eu ajudei a escrever o capítulo sobre os Indígenas do relatório da Comissão da Verdade, junto com mais cinco ou seis pessoas. Em um momento houve uma discussão sobre se era o caso de pôr números ou não. E ganhou a ideia de pôr números. Você tem que lembrar que só em 1987 foi mudada a sistemática de contato com os povos isolados. Até então, os povos isolados eram atraídos e frequentemente levados para outros lugares. E era um momento de muitas mortes, mesmo quando tinha assistência vacinal e de saúde. Quando não tinha, era uma mortandade assustadora. Se fosse somar tudo, o número seria muitíssimo maior. Por essa razão, a partir de 1987, mudou a política: em vez de atrair os povos em isolamento voluntário, ou-se a respeitar seu isolamento. [O indigenista ] Daniel Cangussu está publicando um livro em que chama esses povos de refugiados: eles não estão isolados por desconhecimento dos não Indígenas, eles se isolaram porque os conheceram bem demais, escreve Cangussu.

Mas não tem um número geral ainda?

Não tem, mas dá para imaginar. Por causa da barreira sanitária, que foi o que permitiu, digamos, uma colonização fácil nas Américas e difícil na África. Porque a barreira era contra os europeus na África, e aqui era desfavorável para os Indígenas. Na África, os europeus adoeciam e morriam de doenças locais, como a malária, e aqui eram os Indígenas que morriam no contato. O próprio Davi Kopenawa conta o que foi a mortandade, nos anos 1970, quando os contatos foram brutais, com estradas que chegavam para ser abandonadas posteriormente. Foi o caso da Perimetral Norte no território Yanomami.

E que avaliação a senhora faz da posição do governo Lula nessa questão? O governo tem sido muito cobrado porque há ainda várias homologações represadas.

Eu acho que ele está muito cerceado, de várias maneiras. Esse Congresso está dando um trabalho enorme para as propostas do governo, cada vez é um parto. Agora mesmo, na proposta de emenda constitucional da segurança pública e no projeto que muda o imposto de renda, já está muito difícil. Basta ver que partidos e parlamentares que supostamente são da base governista votaram pelo pedido de urgência para a apreciação do projeto de anistia [para os golpistas do 8 de Janeiro de 2023]. Eles não se consideram obrigados a apoiar o governo. Tudo é uma negociação Casa a Casa, é uma coisa horrível. Bom, e depois tem também os governadores. No caso, por exemplo, da Bahia, quando precisava mandar a Força Nacional [para proteger os Indígenas no sul do estado], o governador [Jerônimo Rodrigues], que é do PT, resistiu a anuir. É complicado.

A criação do Ministério dos Povos Indígenas e o fato de a Funai estar pela primeira vez sendo comandada por uma Indígena têm um saldo positivo?

Eu acho que sim, mas não tanto quanto a gente esperava. Acho que ainda é cedo, que ficou aquém do que poderia ter sido. Eu não culpo o Lula pessoalmente, evidentemente. Na situação em que ele está, com essa oposição popular, atribuindo até o preço dos alimentos diretamente ao governo Lula, ele está muito entrevado. É o mundo real. Mas que o ministério é positivo, é. E é muito positivo também que a Funai seja liderada pela Joênia [Wapichana], que é uma pessoa extremamente capaz, como já mostrou quando foi deputada. Mas temos que ver a continuação, está tudo muito fresco ainda.

E o movimento Indígena está num momento positivo em termos de acumulação de forças?

Na medida em que é feito o nexo entre a questão climática, a questão ambiental e as populações tradicionais - não só Indígenas, aliás - isso dá uma força real. E em nível internacional. Por outro lado, nós estamos num momento em que o presidente dos Estados Unidos está rompendo todas as tradições e mandando às favas todos os órgãos internacionais. A ONU está desprestigiada, todas as organizações multilaterais. Nós estamos num momento particularmente difícil. Mas que há um reconhecimento hoje em dia da importância dos povos Indígenas, eu acho que isso está assegurado. Internamente, até que ponto isso conta ou não conta, é complicado.

Seu relatório sobre a expulsão dos Ribeirinhos por Belo Monte foi importante para a concepção da proposta de criação de um território em que eles pudessem recuperar seus modos de vida. Mas, até hoje, o território não foi criado...

É uma frustração muito grande, porque essas coisas se arrastam. Simplesmente se paralisam. Tudo se deteriora.

Apesar de tudo, o Brasil tem hoje uma legislação avançada sobre os Indígenas e as populações tradicionais. Ou não?

É verdade, mas o problema é que as leis não são seguidas.

MANUELA NA CASA COMPRADA PELOS SEUS PAIS, HÚNGAROS JUDEUS, QUANDO VIERAM PARA O BRASIL DEPOIS DE SE REFUGIAREM EM PORTUGAL. FOTO: LELA BELTRÃO/SUMAÚMA

Reportagem e texto: Claudia Antunes
Edição: Eliane Brum
Edição de arte: Cacao Sousa
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Caroline Farah
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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